Quando o som da ladainha do Mestre Curió soou, a Cidade da Capoeira, na Biblioteca Central da Bahia, parou pra ouvir, ver e aprender com os heróis da cultura popular, que reunidos neste domingo (16), formaram a Roda do Século, ato que encerrou 3° Festival de Capoeira: Ancestralidade e Resistência.

O momento simbolizou o retrato da história da capoeira, que surgiu em forma de defesa contra os escravocratas e evoluiu para uma arte-luta ancestral, passada por gerações e que atravessa civilizações, levando a Bahia para o mundo.
Com Griôs entre 80 e 98 anos, que durante suas trajetórias enfrentaram repressão, racismo e invisibilização do estado e da sociedade, a Roda do Século colocou esses corpos – que antes guerreavam por sobrevivência, em movimento de celebração. Entre eles o Mestre Carcará, de Santo Amaro, que aos 83 anos encantou com a sua oralidade.
“Vamos levar esse grande movimento que é a capoeira pra frente. A capoeira dá, mas ela também tira. É uma arte muito boa, bonita e decente, então a gente tem que respeitar a posição dela e a maneira dela ser. Ninguém é o ‘bam bam bam’ da capoeira. Capoeirista bom é aquele que tá frequentando. Eu durmo e acordo abraçado com a capoeira, comecei na idade desses garotos e hoje sei que não sei tudo sobre ela”.

Mesmo com limitações físicas, alguns Mestres participaram da Roda Secular. Mestre Zé Mário e Mestre Zeca deram exemplo de que o poder da ginga não está preso a técnicas corporais, e, sim, na mente.

“Eu comecei na capoeira com 11 anos. Viajei o mundo. Fui à França, Canadá, Estados Unidos, Guatemala, vários países. E ver o que está acontecendo agora, de quando eu comecei até hoje, percebi que fizemos o caminho certo. Mas eu fico triste quando não vejo a nossa capoeira nas Olimpíadas. Por quê não? Se temos todo esse movimento, toda essa cultura, toda essa técnica que nós vimos aqui nesse Festival, dos pequenos aos mais velhos. Fico grato em saber que o governo já tirou a lei da Capoeira nas Escolas do papel e espero que no próximo ano esteja aqui com novas conquistas”, disse Mestre Zeca.

Mestre mais velho em atividade no mundo, Mestre Felipe de Santo Amaro com simpatia e educação informou precisar se retirar antes do final do evento. “Me desculpem a falta, estou feliz com toda essa homenagem”.

Reis da musicalidade, Mestre Curió e Mestre Olavo deram um show com as cantigas de capoeira. Discípulo do Mestre Pastinha (1889-1981), que foi fundador da primeira escola de Capoeira Angola no Brasil, Curió contou que seu acervo musical ainda continua em atualização. “Todas essas músicas que estou cantando são minhas, duas delas eu fiz pro Mestre Pastinha, e tenho novas também. Música é de domínio público, mas tem gente que pega nossas composições e não dá nada pra gente”. Mestre Olavo agradeceu a oportunidade. “É bom ver que estão fazendo essa homenagem pra gente em vida, isso é importante”, disse.
Outros Mestres e Mestra Griôs que estiveram presente no evento foram Mestre Virgílio da Fazenda Grande, Mestre Nô, Mestre Baiano, Mestre Zé Mário, Mestre Boa Gente, Mestra Lene, entre outros Mestres e Mestras de várias partes do Brasil, que contribuíram e contribuem para a Salvaguarda da Capoeira e a sua propagação nos quatro cantos de mundo, criando atalhos para os mais novos que carregam uma enorme responsabilidade: construir um Futuro Ancestral.

Nova geração da Capoeira
Jovens capoeiristas conteram a energia dos pés e usaram a da mente para absorver a vivência com os Griôs. Nelson Nascimento, 16, conhecido como Siri, do grupo Arte de Gingar, descreveu o momento como único. “Experiência única, vou guardar pra minha vida e na minha galeria. Nunca vivi isso”.

Maísa Santana, 26, do Grupo Palmares, participou do Festival pela primeira vez e se emocionou. “Sensação indescritível de estar aqui e ter essa conexão com a nossa ancestralidade”.

Mário Eduardo, 16, do Grupo Lua Branca, também não segurou a emoção ao ver os seus ídolos. “Ver os Mestres hoje, como o Mestre Curió, Mestre Nô, Mestre Felipe, Mestre Barreto, cantando as ladainhas que eu escuto quando estou treinando, é uma coisa muito gratificante. Confesso que me arrepiei”.

Um Festival de todos e todas
Nos agradecimentos finais, Jurandir Júnior (Jacaré DiAlabama), coordenador do CMB, destacou a importância da equipe que fez o Festival de Capoeira acontecer e disse o que espera do pós-evento.
“Em nome do Capoeira em Movimento Bahia quero agradecer a todos e todas que contribuíram com esse lindo Festival. Agradecer a turma da produção, comunicação, da feira do artesanato, o pessoal da técnica, segurança. Todos contribuíram. Muitos vieram de longe, dos diversos cantos da Bahia, de outros estados, e fez esse sonho, mais uma vez, se transformar em realidade. Nós esperamos que a partir desse festival a gente consiga construir e conquistar novas vitórias para a capoeira. A Capoeira nas escolas públicas hoje é uma realidade, mas muita coisa precisa ainda ser desenvolvida. E nós estamos aqui fazendo que o Festival seja mais do que um evento, mas seja também a própria construção coletiva da capoeira em defesa da melhoria da qualidade de vida da nossa comunidade, sobretudo dos nossos Mestres e Mestras”.

Samba e Saudade
E como na capoeira tudo termina em samba, o evento fechou com chave de ouro ao som do grupo Rodas de Samba da Bahia, com participação de Gal do Beco. Toda a equipe e os visitantes caíram na gandaia ao som do ritmo que carrega a mesma origem da capoeira.
Morando nos Estados Unidos, Ingride Banzo, conhecida na capoeira como Professora Formiga, já sente falta do Festival. “Fui presenteada com esse evento nos últimos dias da minha estadia aqui. Estou me sentindo super conectada e agora faz sentido aquele ditado ‘quando a gente não sabe pra onde vai, é só olhar pra trás e ver de onde a gente veio’. O Festival foi lindo, que honra poder estar aqui. Estou encantada do começo ao final e espero estar no próximo. Vai deixar saudades”.


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